No Brasil, de acordo com a Constituição Federal de 1988, a ordem econômica e social tem como finalidade promover o desenvolvimento e a justiça social, tendo como base a função social da propriedade. Ainda, de acordo com a Constituição, a habitação é reconhecida como direito individual, bem como direito social, cujo texto alterado pela Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, em seu artigo 6º versa: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 1988).
Entretanto, ainda que estabelecido em lei, o direito à moradia não traduz a realidade das condições habitacionais no país, onde o déficit habitacional estimado é 5.657.249 milhões, com grande participação do ônus excessivo com o aluguel urbano (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO).
Segundo o levantamento, 52,2% dos imóveis (3,2 milhões) classificados em déficit habitacional são por conta do ônus excessivo com o aluguel. Enquanto isso, a habitação precária é responsável por 27,1% (1,6 mi) e a coabitação possui os outros 20,8% (1,2 mi).
De acordo com o levantamento, inclusive, 74,5% das moradias em déficit habitacional são lideradas por famílias com uma renda de até R$ 2.640,00, ou seja, enquadradas dentro da Faixa 1 do programa Minha Casa, Minha Vida.
Mas porque sempre que falamos em déficit o Programa MCMV é mencionado?
Para entender a habitação social precisamos voltar no tempo.
Até a década de 1930, as soluções de moradias para os setores de renda média e baixa passavam pela iniciativa privada, através, principalmente de casas de aluguel, dentre as quais se destacavam as vilas operárias, ora produzidas por investidores privados exclusivamente para locação.
Após a década de 1930 a habitação começou a ser vista como questão social e de Estado sendo criados órgãos governamentais que se encarregam de produzir ou financiar a produção habitacional – as Carteiras Prediais dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) em 1933 e a Fundação Casa Popular (FCP) em 1946.
As unidades habitacionais para os associados dos IAPs deveriam ser mínimas, de modo que o custo para com a sua produção se enquadrasse nos salários dos trabalhadores. Contudo, apesar de baratas, as habitações não poderiam perder a qualidade, a habitabilidade, o conforto e a higiene.
A incorporação de componentes do ideário moderno na produção dos IAP/FCP foi importantíssima, conforme Negrelos (2014, apud BONDUKI, 1996/2010, p. 97) reúne os seguintes oito componentes que deveriam estar presentes nos conjuntos habitacionais então promovidos pelo Estado:
(...) a construção de conjuntos habitacionais segregados do traçado urbano existente; a opção pela construção de blocos; limite para a altura dos blocos; a utilização dos pilotis; adoção do [apartamento] duplex; os processos de construção racionalizados e a edificação de conjuntos autárquicos; a articulação da construção de conjuntos habitacionais com planos urbanísticos; a entrega da casa mobiliada, de forma racional. (NEGRELOS 2014, apud BONDUKI, 1996/2010, p. 97).
Em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, o Brasil enfrentava uma crise habitacional que se relacionava ao desaparecimento de imóveis para locação e o então presidente Getúlio Vargas decreta a Lei do Inquilinato, congelando os aluguéis e favorecendo uma crise onde os proprietários não tinham mais incentivo econômico para construir casas de aluguéis, e acabavam despejando os inquilinos em um momento de grande fluxo migratório do meio rural para o centro urbano.
A drástica redução no número de unidades para moradia de trabalhadores, somado ao número crescente de despejos, empurraram os mais pobres (despejados e migrantes recém-chegados) para a autoconstrução irregular em terrenos públicos.
Deste modo, o investimento privado em imóveis para os trabalhadores acabou perdendo a lucratividade, a progressiva redução dos investimentos privados na produção habitacional tornou a indústria de construção interessada em receber recursos públicos para manter sua atividade, situação que, aliás, se mantém até os dias atuais.
Com o agravamento da crise de moradia, em 1964 o governo militar institui o Sistema Financeiro da Habitação (SFH) e o Banco Nacional de Habitação (BNH), cuja fonte de recursos para o financiamento de obras à população de baixa renda era o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço - FGTS.
Em 1965, o governo federal cria as Companhias de Habitação (COHABS), sociedades de economia mista que atuavam como agentes financeiros e promotores
subordinados às diretrizes fixadas pelo BNH. No contexto do Banco Nacional de Habitação (BNH) a produção habitacional através das COHABS dava-se por meio de licitação pública com edital para projeto e execução. A racionalidade das construtoras e a demanda por produzir um número extenso de edificações ocupavam principalmente grandes glebas, muitas vezes ainda rurais, nas periferias das grandes cidades, levando a produção de megaconjuntos habitacionais, conforme exemplo da imagem abaixo, executados com projetos-tipo onde o empreendimento visava maior retorno financeiro.
Neste período, o profissional arquiteto e urbanista atua de forma burocrática nas COHABs, culminando na perda da função social do arquiteto e para o crescente desconhecimento de suas atribuições e importância para o projeto da cidade e da habitação.
Os autores Dickmann e Dickmann (2015) destacam, dentre os erros praticados, a opção por grandes conjuntos na periferia das cidades, a desarticulação entre os projetos habitacionais e a política urbana e o absoluto desprezo pela qualidade do projeto, gerando soluções padronizadas e sem nenhuma preocupação com a qualidade da moradia, desconsiderando as peculiaridades de cada região, não levando em conta aspectos culturais, ambientais e de contexto urbano.
Vale ressaltar a grande iniciativa por parte do governo populista da época em exterminar a moradia multifamiliar dos aluguéis e cortiços e incentivar o lote isolado e a moradia isolada, incentivar o trabalhador a cuidar de sua família e ter sua poupança bancária, mas o o objetivo era provocar o endividamento bancário do trabalhador e, assim, o financiamento das grandes empreiteiras e da indústria da construção civil, para enfrentamento da crise econômica.
As diretrizes em relação às modificações na moradia dos trabalhadores entre o século XIX e o século XX se assemelhavam às direcionadas às demais habitações, com ênfase na questão da economia, levando a uma redução de escala, isenção de impostos, utilização de materiais de baixo custo e a preocupação com o programa mínimo da casa. Quantidade era melhor que qualidade, e o capital bancário é quem ordena como as habitações são construídas.
Conforme Maricato (1987), a crise econômica que atingiu o Brasil nos anos 1980 agravou a inadimplência dos financiamentos, e entre 1971 e 1974 atingira aproximadamente 30% dos beneficiários. O BNH é finalmente extinto em 1986, através do Decreto-lei nº 2.291/86, tendo sido suas atribuições transferidas para a Caixa Econômica Federal. Até os dias atuais a CEF mantém essa atribuição.
Após este período, um marco importante foi a promulgação da Constituição Federal em 1988, que prevê um capítulo específico para a “política urbana” e inclui os artigos 182 e 183, a partir dos quais se elabora, posteriormente, o Estatuto da Cidade. Estes artigos incluem no sistema jurídico dois princípios essenciais – o da função social da cidade e o da função social da propriedade urbana, reconhecendo a necessidade de superação das dificuldades de acesso à terra associada à retenção especulativa do imóvel urbano, um dos graves problemas para a superação do déficit (quantitativo e qualitativo) de moradias.
O lançamento do Plano Real, em 1994, propicia um cenário estável economicamente onde é possível uma retomada do crédito e dos financiamentos habitacionais com recursos do FGTS, porém, foi apenas em 1999, através da criação do Programa de Arrendamento Residencial (PAR) que a necessidade de moradia para a população de baixa renda foi incluída na política habitacional, sob a forma de arrendamento com opção de compra.
No ano de 2001 foi promulgado o Estatuto da Cidade - Lei 10.257/01 o qual regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal (BRASIL, 1988) e fixa as diretrizes da política urbana brasileira e enfatiza a habitação como parte integrante do desenvolvimento das cidades. A lei amplia a obrigação da existência de Plano Diretor para cidades com mais de vinte mil habitantes e para cidades nas regiões metropolitanas.
Em 2003, com a criação do Ministério das Cidades e do Conselho das Cidades, foi estabelecida uma nova estrutura organizacional para a política habitacional, onde o Ministério tem por função as políticas fundiárias, imobiliárias e os problemas sociais decorrentes das aglomerações urbanas, como saneamento ambiental, trânsito, transporte e habitação.
Um dos pontos importantes do período decorrente é a criação da Política Nacional de Habitação (PNH) contemplando o direito constitucional à moradia com respaldo a função social da propriedade, e, do mesmo modo, visando refletir as diretrizes do governo de inclusão social e gestão participativa (Cadernos MCidades, 2004).
Lançado no contexto da crise financeira internacional de 2008, o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) conforme autores (BONDUKI, 2017; ROLNIK, 2015), buscou conter possíveis repercussões da situação econômica internacional mantendo investimentos do governo no setor da construção civil capazes de manter os níveis de emprego e de consumo da produção habitacional vigente no país. Os moldes do PMCMV são os mesmos que já existiam anteriormente, a bancarização por meio da Caixa Econômica Federal que será a gestora, o controle da construção por meio das grandes empreiteiras e o endividamento da população trabalhadora.
Neste contexto, destaca-se que o programa inclui unidades de até R$ 380.000,00 o que se pode considerar algo inflacionado para a o perfil de renda da sociedade trabalhadora brasileira, ajudando algumas empresas que adquiriram terras a tirar projetos das prateleiras. As distorções perante os valores abrangidos pelas diferentes faixas de atendimento do programa refletem-se mais gravemente na primeira faixa, onde em 2015 foram contratadas apenas 3,66% moradias e apenas para contratos firmados no ano anterior, ou seja, deixou de atender o público que mais necessita do programa e se tornou um programa de incentivo econômico para as empreiteiras.
Outro ponto a ser destacado é que, em se tratando de um programa governamental diretamente ligado às construtoras (mercado imobiliário), a produção habitacional do MCMV se apresenta como uma política pública que expande as periferias das cidades na procura por terras mais baratas e maior lucratividade, principalmente em relação aos empreendimentos da faixa 01, ocasionando em uma dinâmica mercantil das terras urbanas e periurbanas, produzindo com frequência seus empreendimentos de menor lucratividade, a faixa de habitação de interesse social, situados nas franjas das cidades ou de regiões metropolitanas desprovidos de infraestrutura (MARICATO, 2008; ROLNIK, 2015).
Lembra que no início falamos sobre o déficit habitacional brasileiro?
A busca pelos programas habitacionais para resolver a questão da moradia fazendo uso de investimentos públicos e privados, faz com que a quantidade de moradias sempre seja priorizada em relação à qualidade de moradias (KALIL; GELPI; FENGLER, 2017).
Os programas de habitações de interesse social deveriam ser avaliados quantitativamente e qualitativamente, devendo ser desenvolvidas novas propostas visando facilitar e viabilizar a execução de casas de boa qualidade, sendo aplicadas de modo diferentes de Norte a Sul do país, pois mesmo após séculos de oferta irregular, a evolução dos programas de habitação social não resolveu a questão da precariedade das habitações ofertadas.
Estudos sobre a pobre condição da arquitetura e da localização urbana em habitações sociais no Brasil concluem o quanto essas condições afetam os habitantes desses empreendimentos. Apesar disso, as pessoas buscam adaptarem-se as suas moradias, reinventando os modos de habitar e sobreviver de acordo com suas necessidades (VILLA; SARAMAGO; GARCIA; 2015).
No Brasil, a busca pós-industrial por custos mais baixos e padronização de unidades refletiu em centenas de imóveis com as mesmas tipologias sem uma preocupação maior com especificidades regionais. Assim, uma mesma tipologia é adotada em cidades com características distintas, sendo desconsideradas as diversidades socioeconômicas, culturais, climáticas e tecnológicas entre as diferentes regiões do Brasil, o que resulta em construções de baixa qualidade construtiva que não atendem a indicadores de desempenho para a qualidade ambiental do espaço construído.
Da perspectiva ambiental, o aumento da eficiência energética das edificações proporciona, além da redução das emissões de gases de efeito estufa, uma economia de recursos naturais e a mitigação dos efeitos da escassez de recursos nos países, como crises hídricas ou quedas de abastecimento de energia elétrica. Melhorar a qualidade do ar e o conforto térmico por maiores períodos ao longo do ano também são consequências do aumento da eficiência das edificações.
Essa breve retrospectiva sobre as habitações sociais nos mostra como chegamos até aqui e como a produção habitacional de interesse social é extremamente importante para o equilíbrio econômico do país.
A busca por produzir edificações mais eficientes energeticamente é uma necessidade frente aos desafios da produção habitacional. Você se sente preparado para projetar edificações adaptadas ao clima e com maior eficiência?
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